domingo, agosto 27, 2006

OS NORMAIS

OS NORMAIS - publicado riginalmente em 2001

“Se o sujeito é tímido e você forçar um pouquinho, ele pode ser enquadrado na categoria de fobia social. Se ele tem uma mania, leva um diagnóstico de transtorno obsessivo compulsivo. Se a criança está agitada na escola, podem achar que esta tendo um transtorno de atenção e hiperatividade. Coisas normais na vida estão sendo encaradas como patologias”.
Estas e muitas outras frases picantes estão contidas na entrevista dada pelo psiquiatra carioca Jorge Alberto Costa e Silva, ex-Diretor de Saúde Mental da Organização Mundial de Saúde, a uma revista semanal brasileira. Em síntese , o psiquiatra acusa a indústria farmacêutica de cuidar muito mais de sua saúde financeira do que dos pacientes, e órgãos responsáveis pela produção de diagnósticos, por aquilo que classificou de indústria do diagnóstico.
Realmente um verdadeiro arsenal de medicamentos e um não diferente arsenal de diagnósticos detém hoje a psiquiatria e a psicologia moderna, e pelo menos em parte, graças a Deus. Não podemos deixar de reconhecer os benefícios da revolução psiquiátrica e farmacológica. A cada dia que passa, encontramos menos com Napoleão Bonaparte, Jesus Cristo, gente com coceira no cérebro, muito embora alguns ainda continuem sendo abduzidos por Ets e outros acreditando em certos políticos.

Mas a produção de diagnósticos tem sido tão grande que poderíamos sem muitos questionamentos, classificá-las de maníacas. O célebre Simão Bacamarte personagem de Machado de Assis com certeza teria orgasmos ao ler o DSM III, uma espécie de catalogo telefônico dos transtornos mentais.
A fobia é hoje travestida de Sindrome do Pânico. As antigas neuroses obsessivas viraram os transtornos obsessivos compulsivos, e as oscilações de humor do dia a dia, se observadas em close, passaram a receber o péssimo apelido de transtorno bipolar. O olhar crítico e a tentação sádica em diagnosticar, não deixariam passar num psicotécnico nem mesmo a mãe natureza. Alguém, com certeza não hesitaria em diagnosticar de transtorno bipolar o movimento de rotação da terra, já que de noite fica escuro e de dia fica claro, ou mesmo os dias de sol e chuva e quem sabe até o sim e o não. De certa forma isso até já foi feito, os antigos costumavam crer que raios e trovões eram a ira dos Deuses e pelo menos metaforicamente, conseguiam ver aquilo que os químicos a serviço da vida não conseguem ver: que os transtornos podem ser expressões de amor, ódio ou derivados, ou simplesmente formas transitórias ou permanentes de se conduzir na vida.
A tendência humana em afastar desconfortos não é de agora. Os anestésicos são invenção antiga e o desejo de se livrar da dor, uma constante da civilização. E quanto mais artifícios se criam para exclusivamente anestesiar a dor, menor a possibilidade de se lidar efetivamente com ela.
Uma das mais modernas e democráticas contribuições à filosofia das psicopatologias, diz respeito a um tal de “bom funcionamento interno”. Ou seja, um indivíduo seria considerado “normal” a partir do instante em que funcionasse bem internamente e respeitasse os limites negociados pela sociedade; apesar de suas esquisitices. Essa seria uma condição ideal, onde não haveria mais a necessidade social em lidar com seres idênticos ou quase robotizados, base de qualquer catalogo de distúrbio mental: se existe uma “norma”, azar daqueles que se afastam dela. Ou se tratam e tornam-se iguais aos “normais”; ou ficam excluídos com rotulações diversas.
A esse respeito , ainda que sem a intenção principal de desmistificar a questão da norma, um verdadeiro manual de esquisitices tem sido exibido em horário nobre numa emissora de tv, me refiro ao seriado Os normais.
Com histórias bem humoradas e repletas de manias, preconceitos, paranóias, implicâncias e nojos infundados, Luiz Fernando Guimarães e Fernanda Torres, com seus personagens, acabam efetivamente contribuindo para anarquizar um pouco do arranjo psicopatológico que tomou conta dos nossos tempos. O que esta em relevo no seriado, são as características específicas de cada um dos personagens, individualidade que nenhum manual de diagnóstico é capaz de descrever. Talvez , o sucesso deste seriado original ( em sua estréia o IBOPE registrou 27 pontos) onde se deixa de lado, os formalismos arranjados de uma realidade quase sempre maquiada , resida exatamente neste aspecto.
A clonagem emocional, essa espécie de robotização mental, vestígio de dificuldades da sociedade em lidar com a diferença, parece estar fadada a um gradual desaparecimento. Pelo menos é o que podemos perceber em relação às artes, em entrevistas como a aqui citada, alguns programas de televisão e principalmente a Psicanálise.
Vivemos hoje uma tendência à diversidade, um somatório de diferenças, momento onde as aparências ficam circunscritas a roupas , alegorias, e objetos de consumo quase sempre sustentados por uma beleza estética. Quanto ao humano, sua personalidade, seus desejos, suas aspirações, melhor se estiver pautado num modelo ético. Desta forma diminui-se a necessidade de enquadramentos, normatizações e as identificações poderão se limitar a uma expressão há muito conhecida: “pelo menos alguma coisa a gente tem em comum”